Zoara Failla (*)
A revelação de que mais da metade da população brasileira não é leitora, segundo a sexta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, levou a indagações, em especial, porque na internet e nas redes sociais, a leitura é a principal ferramenta de acesso a informações, notícias, publicidade, mensagens e outros conteúdos, inclusive literatura.
De fato, nunca se leu tanto em outros suportes e meios. Até a comunicação pelo telefone está sendo substituída por mensagens escritas, que chegam nos celulares na palma de nossas mãos, despertando uma certa intimidade com a tela e a sensação de que nunca estamos sozinhos.
Mas, trago outra indagação a esses questionamentos sobre a redução no percentual de leitores no Brasil: o que estamos lendo nas redes sociais e plataformas? Essas leituras possibilitam uma visão sem representações da realidade. Uma visão crítica? Elas despertam reflexões e construção de conhecimentos? Despertam empatia?
Leitura de livros – e o desenvolvimento cognitivo, emocional e a empatia
A compreensão sobre o poder da leitura e da literatura tem sido defendida há tempos por educadores e estudiosos, mas, na última década, com a internet e o aumento do interesse pelas telas, neurocientistas e psicólogos, como: a americana Mariane Wolf, autora de “O cérebro Leitor”; o francês Michel Desmurget, autor de: “Os livros nos tornam mais humanos”, “A Fábrica de Cretinos Digitais! E” Faça-os ler” – têm alertado para os riscos da grande exposição de crianças e jovens em telas e redes sociais, e, para os riscos do abandono dos livros.
A exposição às telas e a estrutura hipertextual, segundo esses estudos, têm afetado o desenvolvimento cognitivo, a memória, a capacidade linguística fundamental para a construção do pensamento analítico, a comunicação e o emocional, gerando ansiedade, hiperatividade e prejudicando a convivência interpessoal. Defendem que a “leitura profunda” possibilitada pela leitura silenciosa dos livros (“espaços silenciosos”), potencializa conexões e a capacidade do cérebro de aprender, de interpretar criticamente, de imaginar e de construir conhecimento.
Esses pesquisadores não rejeitam o uso da tecnologia, mas alertam sobre seus efeitos cognitivos e emocionais indesejados, em especial em crianças e jovens e recomendam um equilíbrio.
A leitura de livros e de literatura seria o “antídoto” para o retrocesso da inteligência (“cérebro podre”), e, principalmente, dos riscos que esse retrocesso pode gerar na alienação das pessoas, na desestruturação social e no desenvolvimento humano.
Países como Suécia, com base em avaliação sobre aprendizagem dos alunos, estão retornando aos livros físicos e substituindo as plataformas digitais nas escolas. Defendem a importância de estimular a curiosidade para a aprendizagem autônoma frente a superestimulação nas plataformas digitais, sem o tempo para a dúvida e a imaginação. Além do retorno aos livros impressos, a Suécia, Finlândia e outros países, ao rejeitarem as plataformas digitais, também têm defendido a importância da comunicação no ambiente educacional. Estudos valorizam a linguagem do professor (oralidade) para aumentar a capacidade de aprendizagem dos alunos, provocando a curiosidade e criando imagens mentais e circuitos neurais desejados (“O Poder das Palavras” (2007) – da neurolinguística Terry Mahony).
Na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 6, que coordeno, também é possível avaliar o poder da leitura na vida social e cultural das pessoas, quando comparamos o que os Leitores (de livros) e os Não leitores realizam no tempo livre. Identificamos um percentual e um repertório muito maior de atividade, de toda natureza: culturais, sociais, esportivas e de lazer, entre os que são leitores. Somente dormir e descansar, os não leitores praticam mais do que os leitores. Leitores de literatura em livros também indicam maior interesse do que leitores de literatura em outros meios que não o livro – por práticas sociais de leitura como: Slams, Saraus, clubes de leitura e eventos do livro.
Na “transversalidade” das histórias contadas – temos leitores, telespectadores ou ouvintes?
Vivenciamos muitas “transgressões” e quebra de paradigmas na produção de conteúdos e nos formatos e suportes digitais para oferta e acesso a conteúdo, o que possibilita a sua “transversalidade” envolvendo contextualizar essa produção para além da história contada.
Ao possibilitar ao leitor, de livros digitais ou plataformas, outras experiências, para além da despertada pela palavra escrita, como um som (editoras já estão publicando livros com acesso a músicas de “autoria” dos personagens do livro), uma gravação ou o acesso a imagem do local descrito – esses “intervalos” podem enriquecer a narrativa e a imaginação, em especial, quando possibilitam vivenciar a experiência de um personagem. A dúvida é, se, ao tirar o leitor dos conteúdos escritos nas páginas do livro, ele continua sendo um leitor ou se passa a ser um telespectador, um ouvinte ou um assistente e não mais um leitor (profundo) de conteúdos escritos.
É possível essa “migração” sem perdas ou dispersões na defendida capacidade da leitura de desenvolver habilidades de concentração e de imaginação sobre o que é lido? Difícil, por enquanto, saber! Alguns defendem que, ao invés de perder habilidades, podemos estar desenvolvendo outras.
Há receios quanto a essa dispersão e os múltiplos estímulos e linguagens nas telas digitais. Segundo Johann Hari, pesquisador e escritor escocês, em “Foco Roubado”, o mundo virtual atrapalha a concentração, gerando a falta de foco. Para ele, o “silêncio” e o tempo são fundamentais para o pensar e para as análises e novas ideias, e defende, para isso, a leitura “linear”.
Ler no papel ou no digital? – A preferência e a concentração dos leitores
Pela primeira vez, a pesquisa Retratos da Leitura 6 investigou a preferência e a avaliação dos entrevistados sobre as leituras realizadas no suporte papel ou no digital.
Sobre a última leitura: 83% declararam que o último livro lido era em papel e 16% digital. Quanto a preferência: 57% indicam o papel, 22% o digital e 21% que tanto faz.
Quando perguntados sobre a concentração na leitura, 68% declaram que interrompem mais no digital e 53% que é mais difícil de se concentrar. 58% conseguem ler por mais tempo no papel (23% no digital). Aprendem mais : 42%, no papel, 19% no digital e 38% tanto faz. Consegue imaginar melhor o personagem e entender melhor a história: 48% e 49% no papel, 15% no digital e 36% tanto faz.
Foi interessante verificar a preferência pelo papel em todas as faixas etárias e níveis de escolaridade, como os 65% dos leitores de nível superior que indicaram preferir ler no papel, em todas as alternativas apresentadas na pesquisa.
Como seria um mundo sem livros, sem leitores críticos, e, que se guiam por conteúdos acessados em mídias sociais?
Além dos alertas dos pesquisadores sobre os riscos no cérebro na ausência da leitura, pesquisas indicam os riscos da hiperconectividade, do uso excessivo de mídias sociais e o consumo compulsivo de conteúdos pobres e fracionados – como notícias sensacionalistas, teorias da conspiração e banalidades. Os aplicativos modernos são projetados, por meio dos metadados, e alimentam a hiperconectividade para nos manter viciados na busca de novidades e estímulos. O mundo na tela tem diferente temporalidade e parece linear, gerando a urgência na busca de respostas e soluções e provocando ansiedade e hiperatividade. Esses conteúdos digitais fracionados e sintéticos que permitem desvendar um pouco de tudo, em geral produzidos por algum influenciador digital, também alimentam a necessidade de pertencimento a grupos pelo compartilhamento de ideias e como seguidores desses influenciadores digitais.
Uma população que lê pouco é facilmente manipulada, em especial, por Fake News. Um leitor crítico sabe analisar as informações e conteúdo que chegam até ele. Consegue identificar o que é confiável. A dificuldade para avaliar as informações que acessa podem impactar sua qualidade de vida, sua visão de mundo, suas relações pessoais e profissional, e, quando estudante, pode dificultar a construção do conhecimento e da aprendizagem.
Para o país, o mais grave é não conseguir discernir se as informações que chegam, especialmente pelas redes sociais, são confiáveis. A capacidade de crítica, a formação cultural e humana são essenciais para o desenvolvimento social e para a democracia de um país.
Nem tudo está perdido?
A visão catastrófica de neurocientistas não é compartilhada por todos. Confesso que, às vezes, talvez porque sou esperançosa, fico em dúvida sobre nossa capacidade de entender a dimensão de uma transformação que desestrutura nossas crenças e o conhecimento que nos guiou até aqui.
Estaríamos frente a uma nova forma de produção de conhecimento e de desenvolvimento cognitivo e linguístico? Uma nova linguagem e dimensão para a criação de ficção? outras conexões? Difícil, sem transgredir as referências que temos, imaginar.
Tomara, sim!!!! Desde que os valores e direitos humanos, a liberdade democrática, a preservação da natureza, a tolerância, a indignação com a miséria e a empatia – sobrevivam a essas transgressões.
(*) Zoara Failla – Socióloga. Mestrado em psicologia social. Coordenadora da pesquisa e organizadora do livro “Retratos da Leitura no Brasil “do IPL





