Texto publicado pelo PublishNews, Guilherme Sobota, 11/12/2024
Entre questões levantadas por leitores do PublishNews, estão temas super contemporâneos – como a escala de trabalho extensa que impede a realização de atividades de lazer – bem como diferentes percepções sobre a ‘função do livro’
O PublishNews pediu aos seus leitores – especialistas no assunto ou não – a comentarem os resultados recentes da Pesquisa Retratos da Leitura, divulgados no dia 19 de novembro. A mais completa e aprofundada pesquisa sobre os hábitos de leitura do brasileiro trouxe a informação de que, nos últimos quatro anos, houve uma redução de 6,7 milhões de leitores no país.
Quais são os motivos dos números ruins? O que pode ser feito para aprimorá-los? Que tipos de políticas públicas (em nível federal, estadual e municipal) podem ser usadas para transformar essa realidade? Qual o papel de organizações sociais, institutos e outros entes particulares na discussão? Como atrair mais pessoas para as bibliotecas e para os livros?
São perguntas que vêm à mente quando se analisa os números. Entre razões levantadas pelos leitores, estão questões super contemporâneas – como a escala de trabalho extensa que impede a realização de atividades de lazer – bem como diferentes percepções sobre a “função do livro”, dificuldades no gerenciamento do orçamento doméstico e preço do livro, bem como o contexto sociocultural de desvalorização da leitura e de ataques à ciência e à cultura que marcou essa faixa da história do país.
Leia abaixo algumas das cartas enviadas à redação (com mínimas alterações e revisões, para clareza):
Primeiramente, quero parabenizar pela abertura para essa discussão, que nos impacta diretamente enquanto profissionais do livro, da leitura e da literatura. Como bibliotecário, fico muito satisfeito por termos um resultado atualizado da pesquisa Retratos da Leitura, que considero essencial para compreender o processo de formação leitora no Brasil. Ao mesmo tempo, confesso que fiquei impressionado e inquieto com um dado específico: a ausência de influência de profissionais da área na decisão de leitura de grande parte dos respondentes. Esse dado, que comentei no meu LinkedIn, me levou a questionar: como estamos atuando enquanto classe profissional? A quem estamos realmente servindo?
É sabido que as bibliotecas públicas e escolares enfrentam déficits em diversas regiões do país e, ainda assim, frequentemente são espaços excludentes, em parte devido a uma cultura que coloca o livro em um pedestal. Esse cenário reflete também uma postura, infelizmente comum, entre os profissionais da área, que muitas vezes se mostram protecionistas ou distantes, o que desestimula a comunidade a frequentar bibliotecas. Até pouco tempo atrás – e ainda hoje, em algumas realidades – a biblioteca escolar era vista apenas como um depósito de livros, ou até como o espaço onde alunos eram mandados para cumprir castigos.
Uma possível solução para mudar essa realidade e melhorar os índices apresentados na pesquisa é tornar a leitura algo comum e acessível, tanto quanto aprender português ou matemática. Devemos quebrar o estigma que separa a “alta literatura” de outros tipos de leitura e acolher o que as pessoas já gostam de ler, seja a Bíblia, livros de autoajuda, ou quadrinhos. É preciso desmistificar o medo do “livro inacessível” e valorizar o gosto pessoal de cada leitor como porta de entrada para o universo da leitura.
Claro, uma transformação dessa magnitude não acontece sem políticas públicas eficazes e investimento contínuo. Infelizmente, em muitos municípios, o apoio à biblioteca pública é limitado a doações espontâneas, enquanto a aquisição de livros é vista como um gasto supérfluo, e não como um investimento essencial para a melhoria dos índices educacionais. Essa visão precisa ser urgentemente revertida.
As bibliotecas comunitárias são exemplos inspiradores de promoção genuína da leitura, mesmo com recursos limitados. São iniciativas que mostram como é possível criar conexões reais com a comunidade, ainda que dependam, muitas vezes, do trabalho de pessoas sem formação específica na área. Enquanto profissionais, precisamos nos abrir para aprender com essas experiências e refletir sobre nossos próprios preconceitos literários, que podem restringir o acesso e desvalorizar gêneros populares.
O caminho para melhorar os resultados da Retratos da Leitura passa por tornar o livro acessível e próximo, algo presente no cotidiano, sem perder seu valor. É preciso tirar o livro do pedestal e deixá-lo ao alcance de todos, transformando a biblioteca em um espaço acolhedor e democrático. Afinal, a leitura só se expande quando ultrapassa barreiras – físicas, simbólicas ou institucionais.
Thiago Wyse, bibliotecário e produtor cultural no Rio Grande do Sul
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Estou cada vez mais convencido de que ao menos duas das raízes (se não as principais delas) para o baixo índice geral de leitura são a nossa extensa jornada de trabalho, sobretudo na escala 6×1, e o aumento do custo de vida. A principal razão entre leitores e não leitores para não ter lido é falta de tempo, mas é preciso destacar, tendo em vista que o hábito de leitura requer descanso e foco, que não ter paciência para ler e se sentir muito cansado para ler são respostas relativamente expressivas e podem ser relacionadas ao esgotamento físico e mental pelo qual o trabalhador brasileiro passa após o dia de trabalho. Acredito que isso também se deve à constante exposição a redes sociais que minam nossa capacidade de concentração, pois são opções de entretenimento que geralmente demandam pouco esforço mental. Além disso, segundo números do Dieese de outubro de 2024, o salário mínimo necessário para sustentar uma família de quatro pessoas deveria ser R$ 6.769,87, e não R$ 1.412,00. Hoje, 90% da população brasileira recebe menos de R$ 3.500 por mês e 78% das famílias estão endividadas. Com o aumento do custo de vida, muitos trabalhadores nessa condição são impedidos de acessar certos bens de consumo (livros, por exemplo) e muitas vezes obrigados a complementar renda com trabalhos secundários, o que significa ainda menos tempo livre para atividades de lazer.
O setor editorial brasileiro não se sustenta com venda de livros, se sustenta com hábito de leitura. É claro que há muitas medidas que podem contribuir para a melhora dos índices, mas não vejo como cultivarmos esse hábito sem avançar em pautas como redução da jornada de trabalho, fim da escala 6×1, regulação das redes sociais, política de valorização real do salário mínimo e investimento público pesado em educação e cultura (sem restrição por teto de gastos).
Iuri Pavan Dias, editor de livros no Rio de Janeiro (RJ)
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Cinquenta e quatro por cento dos brasileiros não estão nem aí para os livros. O preocupante dado foi publicado na edição de 2024 da “Pesquisa Retratos da Leitura”, o mais completo e esclarecedor documento sobre os hábitos de leitura do ex-país do Carnaval, da cachaça e do futebol, tornado paraíso das bets, da cerveja gringa, dos festivais de música de gosto duvidoso, das tretas das redes sociais. Em 2015, éramos 104,7 milhões de leitores. Em 2019, 101,1 milhões, e, neste ano, 93,4 milhões de heróis da resistência. A informação de que mais da metade da população sequer olha para a capa de um livro serve (ou deveria servir) de alerta: o Brasil nada de braçadas na direção do pântano da ignorância literária. Se é fato que “um país se faz com homens e livros”, estamos ferrados. Se é fato que “bendito o que semeia livros, livros a mancheias e manda o povo pensar”, estamos pra lá de Marrakesh, manietados pelas armadilhas das “telas”. O Capital e seus representantes nas três esferas do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) desde muito estão empenhados em evitar a libertação do povo por meio do conhecimento.
Ler livros faz pensar e transforma escravos em pessoas libertos – homens e mulheres. Mais prudente – concordam testas de ferro do poder – é mantê-los na cegueira: – Vá que tomem gosto pela literatura e comecem a raciocinar e, a partir daí, descobrem o quanto são manipulados, enganados, explorados! O Governo Lula deveria tomar para si a missão inadiável e necessária de criar mecanismos públicos de fomento à leitura de livros – se é que pretende se empenhar ativamente na formação de novas gerações de brasileiros pensantes e, portanto, livres. A atual administração federal poderia tomar iniciativa semelhante à do governo português: lá, desde o início de novembro, os jovens nascidos em 2005 e 2006 recebem 20 euros (cerca de 120 reais) para investirem no “poder transformador da leitura”. A ação em benefício da propagação da literatura já resultou, por exemplo, na adesão de 200 livrarias espalhadas por Portugal. Diante dos lamentáveis índices de “analfabetos literários” é hora de o poder público agir e incentivar o gosto pelo livro e a leitura. Se não, o Brasil nunca passará de um projeto de nação, formado por gente obtusa e manipulável. Mas não é exatamente esse o plano, há séculos? Que o futuro me desminta!
Luiz Carlos Freitas, escritor e jornalista, de Pelotas (RS)
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Inicialmente, ao contrário do que muitos têm dito, discordo de que a falta de políticas públicas explique em completo o resultado da pesquisa. Se estudarmos os resultados do relatório, há evidências de que o problema consiste numa disparidade entre a percepção sobre a literatura por parte do povo leitor (que, repetidas vezes, responde na pesquisa que lê por “gosto”, “distração”, entretenimento) e aquela bombardeada pela mídia, isto é, que leitura tem a “função” de aculturar o leitor. Repare-se que, ao serem perguntados o que “significa” a leitura (pg. 78), 41% dos entrevistados repetiram o que a mídia propagandeia (“A leitura traz conhecimento”). No entanto, esses mesmos entrevistados se contradizem em outros momentos (por exemplo, pg. 40), respondendo, em maioria, que leem porque gostam ou para se distrair, ignorando as demais opções, que incluem aquisição de conhecimento.
A disparidade “povo versus mídia” quanto ao entendimento da leitura se reflete em outros momentos. Por exemplo, quando o povo leitor, surpreendentemente, revela que lê ou compra livros sem sofrer qualquer influência de resenhas, críticas, influenciadores digitais, redes sociais, blogs (pg. 115). E na página 66, os entrevistados revelam que a influência de influenciador digital para desenvolverem o gosto pela leitura foi de 0%. A propósito disso, é interessante analisar a “falta de tempo”, alegada como motivo para não ler (pg. 53). Ao contrapormos essa resposta com a da página 55 (O que gosta de fazer no tempo livre), encontramos, primeiramente, o uso da internet e, em segundo, o uso de WhatsApp e Telegram. Porém, o consumo de aparatos de mídia (redes sociais, jornal, revista, Podcast etc) fica muito abaixo disso. Notem a completa distância entre o povo e a mídia também no tema leitura x tempo livre.
Diante disso, no meu ver, o resultado da pesquisa deixa nas entrelinhas um recado para nossos escritores. Se temos um povo leitor que lê e quer ler por entretenimento, mas, simultaneamente, temos autores que, mal guiados pela mídia, creem que sua função literária é fornecer conhecimento e cultura, é claro que haverá um desencontro. E isso nenhuma política pública é capaz de mudar. Os escritores é que precisam abrir os olhos e dar ao povo leitor o que ele quer.
Mário Filipe Souto, bacharel em Letras, de Nova Iguaçu (RJ)
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A respeito de “Retratos da Leitura no Brasil 2024”, nós lemos a pesquisa, que revela dados muito interessantes. Para nós, em linhas gerais, a diminuição do número de leitores no Brasil se deve, nos dias de hoje, a vários fatores, tais como:
– O alto preço dos livros impressos no Brasil, que não é uma “justificativa fácil” e sim um fato, uma vez que, associado a outros, torna-se uma causa ainda mais pertinente. A impressão aqui é tão cara, comparada a outros países, que a própria Amazon BR não imprime livros no nosso país. A opção de livros impressos que aparece no site da Amazon BR para vários títulos refere-se, na verdade, a plataformas brasileiras parceiras da Amazon que imprimem sob demanda. Os leitores não sabem disso, até porque para eles esse detalhe não faz diferença quando efetuam a compra de um livro impresso, mas as editoras e autores independentes sabem.
– Facilidade de acesso às redes sociais, que provocam muita distração, sem dúvida, especialmente em quem não tem o hábito de ler, e até mesmo entre aqueles que leem livros com regularidade.
– Falta de campanhas nacionais que incentivem a leitura.
– Falta de campanhas nacionais que incentivem a visita a bibliotecas.
– Falta de campanhas nacionais que incentivem a participação em eventos literários.
– Falta de campanhas nacionais com celebridades/influenciadores digitais falando sobre livros e leitura.
– Falta de hábito na própria família, por causas diversas. Se os pais não leem livros habitualmente, é provável que seus filhos sigam esse exemplo.
Sabemos que existem diversos outros motivos, inclusive históricos, que explicam a diminuição do número de leitores de livros no Brasil, mas os que citamos acima são, para nós, os mais impactantes.
Janaina R. Vieira e Isabelle N. Martins, da editora carioca Arte Literária
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Não consigo ser sutil diante do atual cenário: me chama muito a atenção que o número de leitores tenha diminuído ao mesmo tempo em que vemos muitas pessoas perderem a vergonha de serem ignorantes, preconceituosas e fechadas em seus próprios mundos.
Mesmo que haja booktubers, booktokers e bookgrammers, isso não tem sido suficiente para incentivar as pessoas que estão nas redes sociais a lerem mais. Muito pelo contrário: consome-se cada vez mais conteúdo vazio só pelo consumo, só pelo instante de dopamina. E aí essas mesmas pessoas dizem que não têm tempo para ler, como mostra a pesquisa; mas ficar matando tempo nas redes sociais com influencers de consumismo e vidas irrealistas elas podem.
Outra questão que me chamou muito a atenção na pesquisa foi como os não-leitores que afirmam não gostarem de ler aumentaram substancialmente. Eu conheci pessoas que batiam no peito com orgulho para dizer que não gostavam de ler. Isso devia ser motivo de vergonha, mas essas pessoas estão cada vez mais se dando ao luxo de serem ignorantes, quando não realmente burras por opção. O fenômeno das fake news de massa também diz algo sobre essa diminuição do número de leitores; afinal, quanto menos se lê, menos senso crítico se tem.
A meu ver, isso tem menos a ver com o trabalho de quem incentiva a ler – professores, livreiros, contadores de histórias, bibliotecários, editoras – do que com um problema social associado ao consumo, à alienação causada pelas redes sociais, à desvalorização da educação como um todo. Não é um problema isolado, mas sim algo sintomático da nossa atual realidade.
Ingrid Requi Jakubiak, revisora e preparadora de textos e historiadora, de Curitiba (PR)
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